Noturna

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Noturna é um livro que foi germinado aos poucos, por anos, dançando pela chuva e espantando lagartas a grito.

Antes, semeava o que o vento trazia: mato, como o dente-de-leão, o tomateiro ou a mamona. No entanto, me acometia um desejo frondoso, um desejo de árvore. A imagem que este livro carrega na capa, no seu interior.

Para tal, me foi preciso parar de escrever somente para si. Queria o reflexo do mundo nas poças d’águas, as narrativas aquecidas pelo fogo. Escrever para o outro, para o leitor, para você que recebe este livro. Uma escrita de si para o outro, criar uma espécie de telepatia. Já dormimos, todos nós, sob o mesmo manto escuro, não?

Quando eu escrevia o último conto, que leva o mesmo nome que o título, o livro fez sua primeira aparição. Como um fantasma, este livro também me perseguia, nos cantos, alongando-se em sombras compridas. Fantasmas podem aparecer a qualquer hora do dia, bastando o desejo. Noturna é fantasma.

Nesse adjetivo tensionando a se tornar substantivo, quero tecer as distorções, o indistinguível, as entranhas do tempo. O quase e o imperfeito. Algo esfumaça a aparente forma das coisas. Uma árvore-fantasma, nascendo toda manhã e sumindo à noite. Porque mistérios sempre há de pintar por aí.

Espero que este livro caiba, também, nos seus sonhos.

Mariana Vieira Gregorio, maio/2021

Posfácio, de Rodrigo Petronio

O livro que o leitor tem em mãos pode ser lido de diversas maneiras. Como um livro-diagrama, ele possui entradas e saídas, linhas e seguimentos, temas e motivos, mesmo que isso não esteja evidente ou previsto em uma estrutura explicitamente aberta.

Por outro lado, essa pluralidade não se encontra apenas na estrutura. Ela compõe a plasticidade mesma da escrita de Mariana Vieira. Manifesta-se não apenas na materialidade vocabular, no estilo espiralado, na vertigem de imagens que se sucedem em caixas de ressonância e hologramas. A seu modo, essa escrita proteica compõe um universo que também é prismado. E oscila como um pêndulo entre o telúrico, o estranho e o sublime.

Essa combinação entre diversidade e estranheza irrompe linha a linha na constituição espacial e temporal dos contos. E também emoldura os eventos e as personagens. Para produzir esse efeito, a escrita de Mariana agencia dois processos: a disseminação e o palimpsesto (sobreposição de camadas).

Somos assim conduzidos por personagens duplas, como Anne Frank, homônima da escritora judia, sobrevivente do Holocausto. Pela personagem cadáver de Lucia, sob os abacateiros, ainda agenciando estórias. E também levados aos limites da meta-ficção no monólogo para Alice, um conto em forma de oxímoro onde narradora e personagem se embaralham e se suspendem. Uma bela narrativa estruturada sobre a indecidibilidade, para pensar com Derrida.

Os temas e os mitemas que atravessam este livro estão também muito ligados ao corpo, à sensorialidade, à sexualidade. Irrompem como topologias e signos de prazer e de dor, materializadas na tessitura mesma das imagens e das palavras. E aqui nos atemos. Admiramos a beleza desta escrita da terra, dos sentidos, dos afetos.

Os gestos habituais, os sons da chuva, a lama dos currais, os zunidos de insetos, as vacas, o cheiro de esterco, os animais, o pasto, uma noite rasgada de piche, o sertanejos, um corpo cheirando a frango, o tempo vagaroso de uma árvore, as areias, o despontar de uma cabecinha da vulva de uma mulher.

E sim: as éguas e os cavalos. As entidades equinas atravessam as linhas da ficção. Pontuam o horizonte como breves lampejos. Desaparecem como miragens. Mariana nos leva por estes caminhos de floresta (Holzwege) e de estradas de terra batida. Adentramos um país arcaico, cheio de pegadas, violência, cicatrizes.

Entretanto, sua escrita disseminadora, esquizo e pluralista, não se restringe a essas naturezas. E não se cansa de espalhar suas palavras-sementes (semens). Concentra-se em esmiuçar relações amorosas ambivalentes. A escrita proteiforme de Mariana explora assim a desconstrução e a reconstrução, as significações e os deslocamentos das personas sexuais de Loliqueen. E investiga outras personagens em seus limiares, como no belíssimo conto que intitula o livro.

A qualidade imaginativa de Mariana é um caso à parte, bem como a costura de suas frases, as variações de ritmos, as associações livres de imagens, as analogias entre objetos, e, acima de tudo, a construção de atmosferas. Depois de atravessarmos estas areias e de respiramos estes ares, saímos com a sensação de que Noturna talvez seja um dos livros de estreia mais potentes da literatura brasileira contemporânea.